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SONORA 2019 – As movimentações culturais e sua importância para construção de uma cena.

Ser independente culturalmente é pensar que  as movimentações culturais acontecem e devem acontecer independente do fator financeiro, principalmente quando exercemos a ideia de uma consciência cultural coletiva. Lógico que ter dinheiro ajuda (em alguns momentos é fundamental), mas  no ano de 2019 acabei circulando em certos locais da cidade de Chapecó, e me surpreendeu o fato de como essa movimentação cultural periférica vem acontecendo independente de um centro comandando financeiramente, ditando um comportamento ou regra. Nesse sentido entendo que essas movimentações culturais que antes aconteciam muito em função desse centro, hoje se proliferam de forma silenciosa, mas nunca invisíveis, porque aos poucos o fortalecimento de um cenário proporciona visibilidade aos que se interessam por algo diferente. E esse algo diferente é o que nos interessa, é o que nos faz perceber o outro, é o que nos tira de nossa zona de conforto, é o que nos faz evoluirmos enquanto seres humanos.

Nos dias 09 e 10 de novembro de 2019 aconteceu o II Sonora Chapecó Festival Internacional de Compositoras. O evento (conforme release informativo) teve origem na “#mulherescriando”, que foi uma iniciativa da musicista Deh Mussulini para romper o imaginário de que existem poucas mulheres compositoras. Com o objetivo claro de dar visibilidade e legitimar a presença da mulher compositora no meio musical rompendo com o círculo vicioso que coloca e reconhece a mulher apenas como  intérprete, estimulando o fortalecimento no âmbito individual de cada compositora por meio da coletividade, num processo mútuo de criação e de divulgação de seus trabalhos através de shows totalmente autorais e outras atividades, como debates, oficinas e exposições.

Em Chapecó o Sonora é encabeçado pelas produtoras culturais e artistas Camila de Almeida (fotógrafa), Carla Melo e Joana Golin (do coletivo Manivas). Aprovado no Edital das Linguagens de Chapecó, o evento aconteceu em duas noites. A primeira noite de imersão e oficinas e a segunda com apresentações de música e poesia.

Acredito que a música cover é importante, mas até certo ponto. Pra mim sempre foi claro o fato de que, o que permanece no tempo e na memória das pessoas é o que fazemos e registramos de forma autoral. É muito simples perceber isso. Você lembra de uma banda cover da década de 70 em Chapecó? O que você, provavelmente lembre é do Tyto Livi. Se não fosse o compacto em vinil registrado por ele, um pioneiro da música independente no Brasil, a sua participação na história musical em Santa Catarina certamente teria desaparecido. Então, é importante compor porque compondo falamos da gente, das nossas coisas, do nosso modo de ser. Falando de nós mesmos, da nossa cultura, nos tornamos universais. Mais do que isso é importante registrar e lançar esses materiais (seja qual for o formato), porque daí eles passam a fazer parte de um imaginário coletivo. Por isso é importante o Festival Sonora, porque valoriza e abre espaços criando uma movimentação de mulheres compositoras, para que se fortaleça uma cena.

Essa é a segunda edição do evento, a primeira aconteceu com 3 atrações (Coletivo Manivas, Amanda Cadore, Eliz Bueno com a participação da baterista Bea Chagas), nessa segunda edição o salto quantitativo e qualitativo do evento foi sensacional.

A última atração da noite Marissol Mwaba (de Florianópolis) foi muito feliz ao colocar as seguintes palavras sobre isso:

“Ano passado foram três atrações e foi de suma importância que acontecesse porque só consegue crescer e melhorar aquilo que já existe. Então que bom que isso está existindo e que vocês estão aqui, fazendo com que isso exista. ”

O evento de 2019 aconteceu num hostel chamado Reserva do Ser e fica no bairro Esplanada. Além de ser o primeiro hostel de Chapecó, e possivelmente da região, o espaço vai muito além da possibilidade das pessoas transitarem em Chapecó de forma totalmente alternativa com custos mais acessíveis. O local tem uma essência cultural e aos poucos vem se tornando um espaço alternativo, onde a organização e estrutura física são baseadas na permacultura. O hostel também tem uma biblioteca para seus frequentadores e uma sala cultural para oficinas, trocas de experiência e shows. E foi nesse espaço que aconteceu o evento Sonora.

Dj Ju Dias

O inicio das atividades ficou por conta da Dj Ju Dias (que também é produtora cultural), que tem em seu repertório um variado conhecimento de música brasileira das mais diferentes vertentes. Ela ficou responsável pelos intervalos entre uma atração e outra e também pelo encerramento da noite, que acabou se estendendo muito mais do que estava planejado (como sempre).

Valeska Torres

Dando o pontapé inicial, e não poderia começar melhor, uma performance poético musical com a Valeska Torres. A artista carioca, poeta e escritora começou com um discurso forte numa declamação de poesia vigorosa, em alguns momentos de forma mais rítmica (quase RAP) utilizando-se de bases sonoras que hora faziam ruídos, hora em silêncios entre uma declamação e outra. A escritora veio para Chapecó participar do evento e aproveitou para lançar / divulgar o seu primeiro livro (editora 7 Letras).

“…a urgência de uma poesia que traduz a realidade urbana das periferias e expõe de forma nua e crua uma vivência feminina diante da violência cotidiana.”, diz o texto que apresenta o livro e que exemplifica bem o que foi a performance proferida por ela. Em certo momento, Valeska enfatizou que é recente essa incursão dela na poesia com a utilização de bases pré-gravadas que criam ambiência para as declamações. Mas parecia que ela já fazia isso há muito tempo. Uma sincronia perfeita de palavra, sons e gestos que muito mais do que encantar, esbofeteou o público presente fazendo o pensamento transitar em territórios pouco percorridos.  Não é só a poesia, é uma performance envolvente que nos suga para um espaço forte e pungente, mesmo que não estejamos prontos para isso. Quem bom e que assim seja.  

O livro pode (e deve) ser adquirido através do link:

http://www.7letras.com.br/o-coice-da-egua.html

Laura Müller e Laura Tereza

As apresentações musicais seguiram com Laura Müller e Laura Tereza, duas compositoras chapecoenses. A primeira com uma vertente mais popular romântica e a segunda apesar da pouca idade (tem apenas 16 anos), mostrou um talento incrível ao subir ao palco sozinha, encarando o público com seriedade e profissionalismo. A Laura Muller eu não conhecia, mas a Laura Tereza já tinha visto em apresentações no “Cansei, Vou Viver de Arte na Praça” (outro evento que vem se fazendo de total importância e fundamental para fomentar e promover a cultura alternativa / independente em Chapecó). Lógico que no Sonora o foco é o palco, então consegui prestar mais atenção na proposta de Laura Tereza e me encantou o seu estilo e maturidade musical. Em seguida ela chamou ao palco uma banda de apoio e se desdobrou em possibilidades apresentando um repertório maduro e eficiente. Essa foi a primeira vez que ela encarou um repertório inteiro de composições próprias. Era uma exigência do evento. Não entendo essa obrigatoriedade como uma imposição, mas sim como uma oportunidade e um elemento impulsionador. Se a artista tinha inseguranças em relação a isso, certamente o evento serviu para quebrar essas barreiras e fazer com que a evolução acontecesse em um outro patamar artístico. Outro exemplo é o da Gabriela Costa que foi a terceira atração musical, ela tocou duas músicas de sua autoria num estilo gospel, acompanhada por um violonista. Uma performance forte e marcante e mesmo em carreira recente já demonstrando sintonia com o público presente que cantava e se admirava com os universos sonoros propostos por ela.

pluralidade de estilos

Conversei com a Joana Golin sobre a pluralidade de estilos presentes no evento. Ela comentou que foi lançado um edital para que as artistas se inscrevessem. Mas não teve por parte da comissão organizadora um fator de proibisse ou determinasse que as coisas deveriam acontecer dentro de um estilo. Pelo contrário o olhar é plural e quando maior for o número de possibilidades, melhor. E esse, ao meu entender, talvez seja um dos grandes ganhos do festival, que não se restringiu a um estilo e sem preconceitos abriu espaço para outros ritmos que não se vê misturados as movimentações mais alternativas. E isso acontece muitas vezes por decisão dos próprios nichos que esses gêneros habitam e que em muitos momentos acabam por se restringir, talvez por falta de oportunidade de se confraternizar. Nesse sentido o Sonora  serve como uma via de mão dupla, para desmistificar a ideia de que as diferenças não podem conviver em harmonia. E funcionou, porque o mais legal de tudo é perceber que ali, naquela noite e naquele espaço, tudo é respeito e que o que um faz, o outro escuta, e pode até não gostar, mas contempla e valoriza.

Outro fator importante de ressaltar é como esses eventos vem se consolidando com outros tipos de opções. Porque não é só uma consciência musical é uma consciência do ser, de que as pessoas podem conviver em harmonia respeitando as diferenças em todos os sentidos. E esses eventos reúnem pessoas que respeitam a liberdade do outro, de ser de se comportar de se relacionar.   Nesses espaços as minorias se reforçam e crescem, porque sempre tem pessoas, por exemplo, com comidas alternativas, veganas ou vegetarianas, ou então oferecendo poesia e outros tipos de propostas artesanais. Tudo isso compondo um cenário mais abrangente e muito rico culturalmente e não somente musical.

Coletivo Manivas

O Coletivo Manivas merece um capítulo à parte nessa história toda. Já falei em outros momentos que aqui no oeste se via muito pouco as mulheres participando do movimento musical local. Destaco aqui as irmãs Bueno (Liza e Eliz) que participam da cena desde o final da década de noventa, permanecendo até hoje como parte integrantes de uma cena músico/cultural. Além de tocar na Epopéia a Liza participa do Grupo Vertigem (poesia) e a Eliz atualmente está em carreira solo (ano passado lançou o Ep “Eu Lírico”). Outro projeto de mulheres em Chapecó foi a banda “Dedo Médio”, nos idos de 95, posso estar enganado mas acho que ficou nisso o movimento musical com a participação feminina (cabem pesquisas). E nessa brincadeira lá se foram muitos mais de 15 anos até que aparecessem as Manivas para quebrar tudo.

Importante ressaltar que as Manivas não surgem ao acaso. Muito dessa movimentação se dá pela insistência da Joana Golin e do Isaías Alves, um casal muito agilizado que veio do Maranhão pra Chapecó em 2017 com uma intensidade muito grande e interesse em movimentar a cena cultural da cidade. O Coletivo Manivas surge a partir dos cursos de formação musical encabeçados pelos dois. E o objetivo, desde o inicio era formar um grupo coletivo de musicistas, através, de uma regra bem simples, quem participa dos cursos e tem interesse, podem, de forma espontânea entrar no grupo.

Sempre reforço a ideia de que nos tempos atuais, em momentos de transição e conflitos políticos e ideológicos, só o fato de se fazer algo cultural, mesmo que não se fale objetivamente de política, já é um ato político e de resistência. Mas as Manivas vão muito além da ideia de ser um grupo feminino, de mulheres artistas, percussionistas explorando ritmos folclóricos. Tem uma força de superação individual e coletiva, de quebra de paradigmas e preconceitos enraizados há anos em nossa sociedade. Quando falo que não tínhamos mulheres mais ativas no cenário, talvez o preconceito fosse um dos principais ativos para que isso não acontecesse. E as Manivas anulam os tabus sociais para se colocar num palco empunhando instrumentos que durante muito tempo foram vistos como instrumentos masculinizados. Se fosse só por isso, já valeria muito a pena. Estamos, sim presenciando uma grande quebra de paradigmas. Mas existe uma postura e um discurso forte que vai além das letras e da poesia. Elas se desdobram em atitudes e performances de quem não tem medo de ser mulher e falar de coisas que dizem respeito ao universo feminino. A performance é algo muito forte e marcante. E fica evidente nas apresentações que o uso do corpo e da mente se fazem presentes como uma verdadeira hecatombe cultural.

Pode parecer muito, mas não é só isso, tem a música também. Achou que eu ia esquecer?! Mas não, a música, os ritmos geram outras possibilidades que surgem a partir dessa necessidade de se conhecer, conhecer o outro, respeitar, explorar e extrapolar os limites da musica em ritmos dos mais diversos.

Venho acompanhando mais de perto (cerca de 6 meses) o trabalho delas e confesso que me surpreendo a cada momento com novas performances. Nesse show, realizado no Sonora ficou claro e impressionante como elas vem de uma crescente evolutiva em vários sentidos. Aos poucos o grupo se transformou numa potência onde as subjetividades de um discurso forte vai muito além. E ao meu ver é nesse conjunto de possibilidades que se encontram as riquezas culturais que movimentam as Manivas.

Mesmo a Joana coordenando e se fazendo mais líder, é visível a participação coletiva em diversas frentes, seja da Alice que é um vulcão de preciosidades (como diria o Plato), sempre de forma explosiva tomando conta e impulsionando tudo, a Giovanna Queiroz que com a dança chama o público para se integrar a performance destruindo os limites entre o palco e o público. Seja no background ou na organização como reforçou a Katiúscia falando da importância da Jojô como força motriz, crítica e organizadora das estruturas provocando e chamando a atenção para os detalhes. Lógico que quando destaco e cito alguns nomes, parece que uma chama mais atenção que a outra, mas não é esse o objetivo. Elas pregam uma consciência de coletividade e o show tem que acontecer sempre, independente de uma ou outra não poder participar.

Importante ressaltar que aos poucos elas estão compondo um repertorio autoral incrível e chama a atenção como este repertório funciona no show que além de divertido e dançante, certamente é político. Tudo ao mesmo tempo, o palco vira um momento de celebração da arte, da dança, da música, da poesia, da cultura, sem perder a elegância e a força política. As Manivas dizem o que tem que ser dito, se divertindo. Com sorriso no rosto e de forma contundente. Quer mais? Tem muito mais, o coletivo Manivas é infinito em possibilidades e mesmo com tudo isso que tentei descrever acima, nenhuma palavra substitui a força deste grupo. Enquanto a “homarada” (sem generalizações) se perde num discurso machista (muitas vezes reforçado por um gênero musical), relativamente pobre, as Manivas, estão aí mostrando que o mundo musical pode e deve ser diverso e muito mais rico do que se restringir a certos estereótipos.  Que seja feita a profecia do “infinito” e que as Manivas não acabem nunca.

Amanda Cadore

A Amanda bem como a última convidada da noite se conheceram no The Voice Brasil (programa musical da Rede Globo). Acredito muito nas “veredas que se bifurcam” como diria Jorge Luis Borges e se algo de bom aconteceu com a Amanda nessa participação no The Voice, foi o fato dela não ter avançado na competição. Ao meu entender o programa acaba ditando um rimo e um padrão estético musical. Muitas vezes comprometendo uma força autoral e características pessoais no jeito de fazer ou pensar a música. O fato dela não ter avançado na competição, fez com que ela não desanimasse, voltasse pra Chapeco e gravasse o seu primeiro álbum (financiado com a ajuda dos amigos e fãs) e investisse ainda mais na sua carreira. E isso, ao meu entender é muito mais significativo do que vencer ou ir adiante num programa de entretenimento musical. Ou seja, virou a página e se centrou em outra possibilidades. Outro fator interessante é que ela se cerca de pessoas desse meio musical com talento para fazer com que as suas canções cresçam e se transformem de forma muito interessante. A Amanda vem nesse sentido se destacando e conquistando cada vez mais um público que a segue em apresentações, se emocionando e cantando suas músicas.

No show Amanda e Marissol cantaram a música Abuelita Piedra repetindo o dueto registrado no disco da Amanda.

Ao final, num improviso, Amanda convidou as mulheres presentes para adentrar ao palco e cantar uma última canção. Um momento espontâneo e bonito de uma noite que ainda tinha espaço no coração para ouvir e prestigiar a Marissol. E aí nesse sentido é muito importante essa relação de carinho entre as artistas que ficaram presentes prestigiando umas os trabalhos das outras.

Marissol Mwaba

Uma doce e delicada voz, porém não menos incisiva ou contundente do que qualquer grito. O grito da Marissol é silêncio e poesia retirada dos pequenos sons, da sua origem, da infância e da convivência cultural com a sua avó. Ela reúne num pequeno espaço, tudo aquilo que é essencial para ela e aos poucos nos mostra que o essencial não precisa ser invisível aos olhos, ele pode ser presente num dia a dia onde não se tem medo nem vergonha de se mostrar quem é. Nesse sentido, Marisol conduz o show sozinha e vai aos poucos encantando os presentes. E isso é uma conquista. Uma conquista que precisa ser intensa e cada vez mais coletiva e que deve ser repetida e relembrada o tempo todo. Para não deixar com que os que se julguem donos de certas verdades nos intimidem e nos façam sentir encabulados com aquilo que nos é tão importante. E que seja essa uma essência coletiva. Materializada dia a dia a partir de nós mesmos, mas sempre em relação ao respeito que temos pelo outro. Fazendo com que a aquilo que nos pertence, que é a minha história, possa rebater e explodir em pluralidades tornando-se a nossa história. E que a nossa história seja escrita como uma sinfonia, mas uma sinfonia orgânica espontânea e repleta de sons e texturas regidas pela Marissol.

Essa noite, foi uma noite de entregas e ficou evidente isso no clima de empatia que se criou, numa noite especial de muita emoção e positividade em relação aos cenários hoje nebulosos que passam a existir devido a um tipo de rancor político / cultural que se criou nos últimos tempos e também pela forma desastrosa como as políticas culturais vem sendo tratadas. Sempre entendendo que enquanto houver iniciativas como essa, seremos sempre uma eterna resistência.

Se um dia lá atrás se idealizou uma sociedade alternativa, acredito que hoje podemos constatar indícios de que essas alternativas existem para muito além dos nossos corações. Existem de formas reais e materializadas em novas alternativas, plurais e diversificadas como o mundo deveria ser. Em universos de diálogos onde a consciência do que se discute e se compartilha é que geram os resultados e o respeito pelos mais variados tipos de visão ou diferenças de opinião. Vida longa ao Sonora.


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