Por: Roberto Panarotto
Acordei, estávamos quase em Chapecó. Pensei, ué, tem algo de errado… Só percebi que foi real porque ainda estava no ônibus e lá fora o nascer do sol proporcionava um começo de dia maravilhoso. Sim. Foi real. Não tem como não pensar… as coisas ainda são muito presentes e os sentimentos estão a flor da pele. Ver o Gigante da Beira Rio pulsando com o espetáculo The Wall, conduzido pelo maestro Roger Waters é algo que não se explica. Tudo foi muito intenso e vale a pena manter essas sensações por alguns dias.
Roger Waters não escreveu um grande tratado filosófico ou criou a cura para uma doença rara e muito menos foi líder político de destaque. Ele criou The Wall – o muro, mas um muro tão sensacional que consegue sintetizar tudo isso e consegue tocar as pessoas de maneira única. Estava com um amigo no show e ele comentou: “É impressionante como ele materializa o sentimento. Você olha, entende tudo, sente tudo, mas não consegue explicar o que foi, porque foi, e como tudo isso aconteceu.” Ou seja é algo que, por mais que você justifique, exemplifique, tente relatar algo, é impossível descrever. The Wall é uma experiência única, nada como você estar presente e presenciar isso tudo, com tudo o que tem direito. É um show pra ver, perceber, sentir, rir, chorar, se emocionar… tudo elevado a potencia máxima, não é a toa a unanimidade de quem viu o show, sair empolgado dizendo que Roger Waters é um gênio.
Vou tentar colocar algumas percepções sobre o que eu vi. Por mais pífias que possam parecer, hoje é mais fácil fazer essa avaliação.
Tudo parece muito simples e o roteiro se concentra em reproduzir as ideias que vem de dentro pra fora. Quando Roger Waters criou isso tudo, falava dele e do sentimento que ele tinha em relação ao mundo. Mas o que se sente ao ver é tão profundo que o muro passa ser um grande espelho onde as 60 mil pessoas presentes se vêem projetadas de alguma forma ou de todas. Respirando o mesmo ar, pulsando junto com cada sonoridade, cada frase musical, cada ruído, cada cor, luz…
Aí é que eu digo que o sentimento é o mesmo, mas é na forma que consiste a força da apresentação. Ele cria o muro. O muro é a representatividade de todos os nossos bloqueios. Todos os nossos “nãos” que ouvimos desde o nascer e até a nossa morte, todas as injustiças do mundo estão ali. O não da igreja, da família, da política, do sistema… Ele recria o “monstro”, representa isso de varias maneiras, com vários ícones e signos e simbologias. Ele brinca com todos eles, luta e se digladia com tudo, dispara a sua metralhadora para todos os lados, e quando tu acha que não vai acontecer mais nada, ele incita o público a gritar junto e ajudar ele a derrubar o muro: tear down the wall!!! É a força do grito, da revolta da massa que faz com que o muro caia. Quando falamos de nós mesmos é que nos tornamos universais. Roger Waters soube entender o seu tempo e traduzir isso de maneira singular. Ele nos mostra que é possível. Não existe nada que seja parecido com o que vimos.
Do ponto de vista teórico é fácil perceber os momentos apoiados na construção dos arquétipos (se ocorre de maneira consciente ou não, eu não sei, mas está ali) e na mitologia do herói presentes no livro o Herói das Mil Faces de Joseph Campbell. Ele constrói mais do que um muro, ele constrói um mito. Fica mais fácil de absorver, porque somos uma geração que vivenciou muito disso que, ele mostra em som, imagens e efeitos especiais. Mas também reflete de maneira metafórica a luta do eterno adolescente, utópico que acredita que pode modificar tudo, recriar, brincar de deus. Ele pensa a sua obra numa perspectiva muito ampla e traduz a essência do circo, da odisséia, do teatro grego… é um concerto de rock com cenários, figurinos, sons, efeitos, artes gráficas, ilustrações, cinema, design, desenho animado… Tudo ali é muito bem amarrado e muito bem equilibrando nos aspectos artísticos.
Revisitar o espetáculo The Wall mais de 30 anos depois faz tanto sentido e mostra força de uma obra que é completa. A força de uma obra que só poderia ser realizada hoje com essa evolução tecnológica, o que acaba soando até contraditório. Porque essa evolução acaba sendo possível porque vem com todos os outros elementos juntos.
E por mais fantasmagórico, apocalíptico que seja e por mais profundo psicologicamente que o espetáculo se apresenta. Ele nos faz sair de lá bem. Com a alma lavada e acreditando que é possível derrubar todo e qualquer muro. Não canso de dizer que é impressionante. Indescritível. Ele faz as pessoas entrar numa sintonia cósmica um transe que proporciona momentos de alegria de risos, de tristeza. E por mais que diversas pessoas tenham gravado, não adianta ver isso na internete. Porque o esquema de som e sonoridades que ele recria ao vivo é único. Ele consegue ativar todos os sentidos. Saímos de lá como se tivéssemos sido pisoteados por algo. Ele nos faz pensar que podemos ir além. E quem ler esse texto pode até pensar que estou exagerando. Mas não tem palavras suficientes para descrever. Vou parar pro aqui, mesmo sabendo que o texto poderia render mais umas duas laudas no mínimo.
As fotos que ilustram esse texto são de minha autoria.