Entender e sentir são complementares. Um sobrevive em função do outro. Não precisa necessariamente explicar. Pode representar ou então transformar isso tudo de maneira abstrata. É assim que introduzo o texto que fala de sensações e “tenta” desvendar um pouco de cabeça genial que é Lourenço Mutarelli.
Participei do Crowdfunding promovido pela Editora Pop para publicação dos Sketchbooks do Mutarelli. Achei muito digno por parte da Editora de disponibilizar a verve criativa do Mutarelli. Ter a possibilidade do acesso aos rascunhos, embriões em desenvolvimentos, sêmen, ideias… E a publicação final faz jus a tudo isso. O resultado é surpreendente. Não tem como não querer ter acesso a isso tudo. O Sketchbooks são o Espelho do Mutarelli. A exemplo do filme O Espelho do Tarkovski que reflete o diretor. Os Sketchbooks refletem o Mutarelli. Desnudo, puro, direto, incisivo. É a plenitude de um trabalho, reflexo de uma obra sensacional. A obra que sempre tivemos acesso e que se mostra imponente, áspera, rude, hora agressiva, hora irônica as vezes sarcástica, nos traços experimentais aparecem mais viscerais. Os Sketchbooks refletem o melhor do seu trabalho. Mutarelli se refere a essa publicação como as melhores coisas que ele já fez na vida. Tenho minhas preferências, mas não tem como não sacar a importância desse material. É explosivo. Indispensável. Sensações em estado bruto. Você mergulha a cada pagina, nesse universo insano onde o ser humano reflete a essência do mal. Seja através das palavras ou do desenho propriamente dito. É intenso. Não tem como não se impressionar. Não tem como passar despercebido e não tem com não sentir algo diferente. É uma “droga” que te possibilita percepções diferenciadas desse mundo insano que vivemos e de nós mesmos. Não faz mal. Pelo contrario, faz com que nos sintamos vivos, pulsantes e corajosos para enfrentar tudo isso. A leitura flui, os desenhos enchem os olhos e proporcionam explosões estéticas. Novas sensações que se misturam num redemoinho de possibilidades. Se você não conhece a obra do Mutarelli, talvez os Sketchbooks não sejam um bom começo. A minha dica é, comece lendo tudo e depois desfrute os Sketchbooks. Se conhece a obra não tenha medo. O Mutarelli tem cara feia, e parece meio mal encarado, mas é um doce de pessoa ao vivo.
Voltando no tempo: Tinha um item no Crowdfunding que dizia: contribuindo com tal valor, você receberá todo o restante mais a participação no bar com Mutarelli. Que legal pensei. Seria ótimo. É, seria!* Moro em Chapecó o encontro seria em são Paulo. Poderia me organizar pra ir. Seria ótimo. É, seria!* Pensei diversas vezes e depois liguei um foda-se e resolvi contribuir da mesma forma porque acreditei no projeto e principalmente porque que o Mutarelli ao meu entender, é um dos grande cérebros pensante do cenário artístico nacional. E tenho muitas convicções sobre isso. Ter a oportunidade de trocar uma ideia e entender melhor algumas coisas pra mim se faziam quase necessárias.
O projeto foi finalizado e a data do encontro anunciada: 17 de dezembro. Coincidiu num período do ano bem corrido, mas não poderia deixar de comparecer. Pensei em todas as possibilidades e o coração disparou, a mente idem. Não podia perder isso. E lá fui eu pra São Paulo com a mochila cheia de livros para pegar autógrafos. Pensei, puta merda que chato. Vitima do reflexo dos tempos, não basta ver o artista, tirar uma foto, pegar um autógrafo, arrancar os cabelos, mas tem que sempre querer levar um pedaço do artista pra casa.
Cheguei no bar um pouco atrasado. Estava vendo o Hobbit – (sensacional diga-se de passagem) entrei no bar e logo identifiquei aquela figura sentada na mesa. A receptividade não podia ser melhor. Ele de cara me perguntou:
(abaixo uma transcrição mezzo verídica mezzo calabresa do que teria sido essa conversa inicial)
Mutarelli – Você que veio de Chapecó???
Roberto – É, não podia perder esse encontro.
Mutarelli – Não acreditei que você veio de tão longe para me ver. Daí achei que devia trazer um presente especial pra ti.
E me deu um quadro dele com uma pintura original.
Ele continuou falando: É uma imagem que está no livro: O Dia Que Meu Pai Encontrou Um ET Fazia Um Tempo Quente…
Peguei o presente em mãos e fiquei estático. Parecia que ia derreter. As pessoas que me conhecem sabem que eu não gosto de receber presente. Não pelo fato do presente em si, mas pelo momento em que a minha timidez (que eu geralmente consigo disfarçar bem) aparece de maneira muito intensa. Pensei alto:
Roberto pensando alto – Meu deus que foda!!! Baita presente, e eu vim com a mochila cheia de livros pra pedir autógrafo, mas agora fico até sem jeito de pedir.
Ele disse gentilmente:
Mutarelli gentilmente – Não tem problema. Já estou acostumado com isso. Me dê os livros aqui que eu vou autografando enquanto a gente vai conversando , bebendo e comendo.
Sai a sensação e volta ao racional (talvez nem tanto assim):
Júlia!!! Júlia!!! Júlia!!!
Que porra do caralho!!! WTF!?! Estava ali num bar em são Paulo sentado ao lado do Mutarelli, comendo bolinho de bacalhau, tomando água mineral e conversando.
Iniciamos uma conversa informal que foi ficando cada vez mais descontraída. E foi assim o tempo todo, falando sobre música, cinema, família, filhos, pai, esposa, processos criativos, referencias, participações dele no cinema, tarô, piadas, historias…
O saldo disso tudo. Confirmo o quão importante é esse tipo de postura artística nos tempos atuais. O Mutarelli em pessoa é o oposto da sua obra. Se nela tu percebe vários elementos provocativos, agressivos, violentos etc etc. no ser humano você vê a essência do bem traduzida em carne e osso. Ele é uma figura. Divertido, brincalhão, sensivelmente, educado e por aí vai. E depois de já achar genial o texto, desenhos e a obra como um todo, encontro por detrás daquilo tudo um artista sensacional e um ser humano incrível. Profundo no seu texto, abissal nas suas ilustrações, mas ao mesmo tempo, de uma simplicidade e gentileza indescritíveis.
Nesses momentos é que percebemos o verdadeiro valor da coleção de sentimentos que vamos acumulando em vida e que queremos levar para a “vida eterna”. (incluo na lista de sensações o show do Arnaldo, e o filme Liv e Ingmar que eu escrevo aqui – Liv e Ingmar e aqui – Arnaldo Baptista).
Agradeço aqui aos que apoiaram o projeto e ajudaram a viabilizar esses sentimentos coletivos, os que estiveram presentes no bar, e os que apoiaram da forma que lhes foram mais conveniente. E também ao Cezar e Roger, da Editora POP, pelo carinho e respeito com a obra do Mutarelli.
*Citação ao Sanduíche do Jorge furtado.